O testemunho de São João Crisóstomo


Uma das biografias dos santos cristãos que considero mais fascinante é a de João Crisóstomo, que o leitor só terá a ganhar caso faça uma pesquisa sobre ela. Ele é considerado um dos maiores padres da Igreja Oriental pelos cristãos ortodoxos, e Doutor da Igreja, pelo catolicismo romano. E ouso dizer que, pela ênfase que os protestantes dão à pregação, Crisóstomo também deve ser considerado digno de admiração e inspiração, um de seus patriarcas.
Crisóstomo significa “boca de ouro”. Ele era de família aristocrática; órfão de pai, foi criado pela mãe que o encaminhou a uma excelente educação.
Em sua juventude, João optou pelo batismo cristão, tornando-se um excelente estudante das Sagradas Escrituras, filiando-se à chamada “escola de Antioquia” (foi lá que ele nasceu), que privilegiava mais o sentido literal e histórico das Escrituras; ao contrário da de Alexandria, onde florescia mais o sentido alegórico.
Não tardou e foi ordenado leitor, depois diácono (381), presbítero (386) e finalmente bispo (398) e patriarca de Constantinopla. Nos doze anos em que fora presbítero que surgiu a fama de excelente pregador.
Dizem que fora ordenado bispo um pouco contra a sua vontade. Que evitou o máximo que podia para assumir o encargo, que era alvo de muitas disputas e intrigas. Entretanto, segundo contam, ele foi raptado e meio que “ordenado na marra”.
Além de bispo da capital, Constantinopla, Crisóstomo seria um tipo de orador da corte real (lembrem-se de que Constantinopla era a Capital do Império e a Basílica de Santo Sofia, talvez, a mais bela e “cobiçada da cristandade”).
Entretanto, ao que parece, não contaram muito com a austeridade do bispo, visto que ele fez uma grande reforma no clero local, abriu mão das opulências, festas episcopais (dizem que ele viva uma vida “de monge” na cidade, sempre sozinho durante as refeições, em profundo silêncio e oração, bem como estudo das Escrituras...), criou abrigos, hospitais e organizou sua gente para preparar refeições para uma multidão de pobres.
Como se isso não bastasse, ocorre que sua “boca de ouro” fustigava sem pudor os ricos, os políticos e os poderosos, mesmo do clero, arranjando por causa disso, muitos inimigos.
Um destes seus inimigos, certo bispo, convocou um “concílio” que muitos dizem ter sido forjado e depuseram João.
Ocorre que, uma comoção popular, associada a certos acontecimentos que as autoridades julgaram ser castigo divino trouxeram de volta o “boca de ouro” à famosa Sé episcopal.
Mas não demorou, e começou novamente o ataque de João ao que considerava ser excesso de opulência, não poupando nem a Imperatriz Eudóxia.
E esta, não perdoou, e mandou Crisóstomo para o exílio, na Armênia, que não era absurdamente longe de Constantinopla.
Fato é que, um número incontável de peregrinos ia ouvir o “boca de ouro”, pedir conselhos, orações, etc; ou seja, o rebanho procurava o seu pastor.
Foi por isso que as autoridades determinaram que João fosse levado ainda para mais longe, agora, à caminho do Mar Negro; entretanto, a saúde debilitada de João não permitiu que ele terminasse o seu percurso, de modo que veio a falecer durante tal jornada. Há alguns que entendem que foi o próprio João que pedira para ser exilado ainda mais para longe, para que se evitasse que o sofrido povo de Constantinopla se sacrificasse indo ouvi-lo. A data de seu falecimento, salvo melhor juízo, foi no ano de 407. Ele deixou uma imensa obra teológica, bem como inúmeras epístolas. Sua biografia pode ser pesquisada em muitos sites e obras publicadas no vernáculo. A editora Paulus publicou algumas de suas homilias e estudos teológicos na séria Patrística.
Entretanto, o fato que quero chamar a atenção, após esta visão rápida da vida de João, foi o fato de que, apesar dele assumir um cargo bastante cobiçado, o de bispo, o que lhe renderia bastante poder, influência política e conforto, tal acontecimento não corrompeu seus ideais.
Ele poderia ter optado por viver tranquilamente sua carreira episcopal. No plano doutrinário, salvo melhor juízo, não foi uma época de grandes heresias (já havíamos passado pelos Concílios de Nicéia e Constantinopla). Poderia ficar no “mamão com açúcar”, dando bons conselhos, palestras, etc. Entretanto, ele combateu com veemência o que considerava injusto, a exemplo dos profetas vétero-testamentários, a exemplo de João Batista, e do próprio Jesus. E ele foi fulminante em suas críticas. Ao fazer isso, entendo, João foi piamente um “outro Cristo”, expressando uma autêntica espiritualidade do tipo profética. Alguém que viveu a busca da santificação plena, a simplicidade, e clamou por justiça, pregando o arrependimento, doesse a quem doesse. Essa, em minha opinião, é o grande movimento de “encarnação” do qual os discípulos são constantemente exortados a imitar, de identificação profunda do mestre com a condição dos mais humildes.
Por outro lado, ao contrário de muitos teólogos e pensadores modernos, que acham que a questão da práxis é só o que importa, em detrimento da espiritualidade e do culto, com seus bispos e defensores que deixam a igreja para viver a política, podemos dizer que Crisóstomo foi um grande liturgista, dando à liturgia maior grandiosidade e beleza, sendo que, até hoje, muitas igrejas ortodoxas seguem o rito que acabou levando o seu nome (Divina Liturgia de São João Crisóstomo).
Enfim, não sei se é verdade, mas ao que parece, o imperador Teodósio II, que sucedeu Eudóxia, (era seu filho) pediu perdão publicamente pelo que o Império fez ao grande “boca de ouro”. Em tempos de capitalismo selvagem, em que o imperativo é acumular e competir; em tempos de teologia da prosperidade, em que os ganhos materiais e mensagens de auto-ajuda tomam o foco; em tempos em que manifestações carismáticas parecem tomar o lugar de toda ética e prática social; em tempos que o discurso da práxis parece querer desconsiderar toda a espiritualidade cristã, parece-me que o exemplo de Crisóstomo é fundamental,  como verdadeira luz do para o povo cristão, e para o mundo, enfim.

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A fé corajosa de Edith Stein

A fé sofredora de Dietrich Bonhoeffer

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