Teologia da Espiritualidade: o tratamento das paixões III - A cobiça e a ira
A postagem anterior, em que discorremos acerca da pornea, pode ser lida aqui.
A Philarguria (cobiça, avareza), diferente da gula e da luxúria, nasce “de fora para dentro”, no sentido que de não se trata de uma necessidade fisiológica do ser humano (comida e sexo).
A cultura humana é geralmente baseada na cobiça, que gera o acúmulo e a avareza. Para Cassiano, a avareza está demonstrada quando surge no monge o desejo de multiplicar dinheiro. Logo, ele fica insatisfeito com a vida monástica, se torna bastante crítico, e quer arrumar uma desculpa para abandonar o mosteiro (será que podemos ver um paralelo aqui com a vida de alguns irmãos que desejam abandonar a igreja, o ministério, e começam a se tornarem críticos com tudo e com todos?).
São Bento ensinava que a propriedade privada era um vício. Resistir era uma luta mental, e o monge deveria se contentar com aquilo que o mosteiro oferece, sendo que o abade deveria providenciar o necessário para cada qual. Hoje, a cultura do consumo estimula a ideia de que “quanto mais temos, mais felizes somos”. É muito difundida a ideia de que alguém deprimido e insatisfeito deve fazer compras para se sentir melhor. O ser humano, com sua cobiça e avareza, tem transformado o planeta todo em algo a ser consumido e dispensado. E o interessante é que, quanto mais mercadorias se acumulam, mais infeliz parece se tornar o ser humano. A elevação do pensamento da cobiça para virtude (conforme muitos teóricos do capitalismo preconizaram) transformou tudo em mercadoria, como a pessoa, o trabalho, a religião, etc. A mulher talvez seja a que mais sofre, pois, associando os pensamentos da luxúria e da cobiça, ela acaba que por ser transformada em mercadoria e objeto a ser consumida.
A avareza e a cobiça faz com que a espécie humana barbarize tremendamente as outras espécies de vida animal existentes neste mundo (basta nos lembrarmos daqueles animais que correm risco de extinção por conta da ação humana). As distrações consumidas são muitas vezes formas de se fugir do sentimento de insatisfação interior, da incapacidade de se viver consigo mesmo. Os monges incentivavam a ideia de “estabilidade”, ou seja, de ficar na sua própria cela, a não permitir que os pensamentos pulassem de um lado para outro. Ou seja, ensinavam a pessoa a estar plenamente presente naquilo que faziam (uma forma de escapar do consumismo). A experiência do deserto nos ensina então acerca da necessidade de se cultivar uma cultura de simplicidade e de desapego, a fim de que se possa abrir-se à generosidade, partilha e caridade.
Orgè (ira é de onde surgem os assassinatos. “Qesôr appaim” (brevidade do sopro). Perder o fôlego. Ficar possesso.
Os padres do deserto diziam que é a paixão que mais deixa a pessoa parecida com um demônio. Muitos são os alertas bíblicos contra a ira. A ira do homem não produz a justiça de Deus (Tiago). Não se ponha o sol sobre sua ira (Paulo). Há pelo menos três interpretações quanto a isso. Sua ira não deve vir a lume para a presença de todos. Não se deve deixar virar o dia estando irado. Sua ira não pode fazer apagar o sol de Cristo na sua vida. Não se deve deixar que a luz dos maus pensamentos provocados pela ira oculte a luz de Cristo nos nossos corações.
Os padres e madres eram incentivados a acabar com a própria ira, e com a ira de quem estivesse ao seu redor, principalmente a ira de quem contra eles estivesse irado. Ensinavam que, quem ora, estando irado contra alguém, ora em vão. E que, quem ora, sabendo que contra ele tem alguém não reconciliado, irado, e nada faz para tentar remediar a situação, também ora em vão. Hoje, reconhece-se que o rancor, provocado pela ira, pode produzir até doenças em nosso organismo. A pessoa é literalmente digerida por dentro. Os padres do deserto ensinavam a mudar o seu sistema de crenças que estimulam a nossa reação em relação a determinados acontecimentos, o que coincide com algumas formas de terapia contemporâneas. Eles ensinavam que, entre um evento e uma reação, existe um sistema de crenças. E que na verdade, eram essas crenças que estimulavam determinadas reações, e não os eventos em si (ou seja, se já penso mal de alguém, é muito mais provável que eu julgue negativamente os atos de tal pessoa). Daí, um sistema de crenças positivo, menos julgador, mais compreensivo impede a paixão da ira. Eles eram contra qualquer tipo de ira, de modo que, mesmo o zelo pela justiça tinha que vir desacompanhado de qualquer tipo de ira pessoal. A única ira boa, diziam eles, é contra os nossos próprios pecados, e ela deveria ser canalizada para a busca da virtude.
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