Quem não dá dízimo vai para o inferno?

Há pouco tempo, vi, em um canal de televisão, um pastor de uma igreja que possui milhares de membros no Brasil, ensinar que, aqueles que não dão o dízimo, irão para o inferno.

O raciocínio é muito simples. Segundo Malaquias, que não dá o dízimo é ladrão (Mal 3,7), e, os ladrões não herdarão o Reino de Deus, conforme atesta vários textos das Escrituras.

Também em uma estação de rádio, ouvi um outro pastor (que também é líder de outra denominação bastante numerosa), sustentar opinião parecida com essa.

Muito bem. Será que estas coisas são realmente assim?

Em primeiro lugar, quero ressaltar que não sou contrário, de modo algum, a que alguém separe uma porcentagem de seus rendimentos, e os doe à Igreja. O protestantismo histórico sempre incentivou a dar o dízimo, e, com tais arrecadações, criava uma complexa rede de ajuda comunitária, construía orfanatos, criava escolas que posteriormente se tornaram grandes universidades, etc. Não se ouvia falar de escândalos financeiros, pastores milionários, ou coisas do tipo. Por isso, não precisamos ser contrários ao dízimo, às doações, às ofertas, mas sim ao modo como tal prática tem sido sustentada. Acho que utilizar "Malaquias" pode ser um erro, e, entender que não dizimar condena ao inferno é também um erro de fundamentalistas e literalistas.

Isto porque, também há inúmeros textos que contém duras ameaças para quem não guardar o sábado, a circuncisão, e inúmeras outras questões judaicas (são tantas passagens, que, qualquer que tiver uma chave bíblica as achará facilmente). E nem por isso, estes pastores as declaram obrigatórias, sob as penas do inferno.

Outra questão, é que, os levitas não tinham herança em Israel, não tinham propriedade. Será este o caso dos modernos pastores? Penso que, a maioria possui sim, seus próprios bens e propriedades.

Outro aspecto é que, será que estes pastores observam a lei do dízimo nos estritos termos do Antigo Testamento? Um dízimo anual era para o sustento dos levitas (Lv 27,30), outro, era levado para Jerusalém na festa do Senhor (Dt 14,22), e este segundo, de três em três anos, era destinado para o pobre (Dt 14,28). Eu duvido muito que estes pastores cumpram todos os requisitos vétero-testamentários acerca do dízimo.

Algo que é preciso perguntar do fundo de nosso coração, é o fato de que, em Israel, haver uma religião oficial, sendo o dízimo, uma espécie de imposto estatal. Exigir tal contribuição como uma obrigatoriedade legal mais do que um ato de adoração, em um contexto tributário tão pesado quanto o nosso não seria impor um jugo muito pesado sobre as pessoas? Todos os que administram das coisas sagradas precisam se fazer esta pergunta com temor e tremor.

Conforme já disse, não sou contra que se dê o dízimo à Igreja, ou vinte, trinta, metade dos rendimentos; na verdade, até entendo que o cristão deve realmente se esforçar para contribuir na comunidade que frequenta, de forma periódica e em valor que demande sim algum sacrifício da parte do doador (não pode ser do que lhe sobra), mas suspeito quando utilizam da lei para tentar forçar o fiel a agir desta maneira. Não dizem as Escrituras que maldito aquele que não perseverar em todos os pontos da lei? Porque insistir em pregar a lei assim? Alguns sustentam que o dízimo deve ser exigido porque Abraão o deu o dízimo a Melquisedeque antes de existir a lei. Sem delongar muito sobre os aspectos culturais da ocasião, fato é que, se utilizarmos este exemplo, deveríamos dar dízimo somente uma vez na vida, pois Abraão só viu o referido sacerdote uma vez. Portanto, fica complicado querer justificar tal prática no Antigo Testamento. Por outro lado, mesmo se admitirmos tal argumento, podemos ver que Abraão não deu o dízimo por alguma imposição legal (afinal, a lei não havia sido dada), mas o fez por livre e espontânea liberalidade, em um ato puro de adoração, uma questão pessoal dele e Deus. Penso que, neste sentido sim, o exemplo da Abraão pode ser utilizado.

Fato é que, para os que andam no Espírito, não há lei que os condene (Gal 5,23), e, os cristãos conscientes, sabem que devem contribuir para a obra, seja para sustentar a estrutura da igreja como um todo, seja para o pagamento de seu pastores. Mas estes que jogam o peso da lei sobre os fiéis (não digo que todos o fazem de má fé) devem pensar com cuidado sua própria teologia. Isto porque, quando colocamos uma obra da lei como necessária a salvação (ou, no meu entender, qualquer obra que seja), decaímos da graça (se pudéssemos fazer algo pela nossa salvação, Jesus não precisava ter dado sua vida por nós, bastava mandar o manual lá do céu) e negamos, então, a teologia protestante, e, no meu sentir, paulina, de que o homem é salvo por graça, sem as obras da lei. O protestantismo colocou as obras, não como pressuposto, mas como resultado da salvação. Por isso, ainda que se corra o risco de não engordarmos as contribuições na igreja, jamais devemos ensinar o povo que aquele que não der o dízimo vai para o inferno, pois, caso assim façamos, fico a me perguntar se haverá muita diferença assim entre nós e aqueles que cobraram indulgências no passado...


(publicado originalmente em março de 2009)

Dízimo e inferno

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