A Igreja Evangélica à Luz do Materialismo Histórico




Diferenciando-se profundamente da tradição hegeliana para a qual o motor da história era o racional, toda a insistência marxista está no sentido contrário, ou seja, o da afirmação do caráter humano, concreto, ativo, produtivo da existência. Nas condições materiais de vida, e não na consciência ou na evolução geral do espírito humano, reside o fundamento de sua concepção[1].



Segundo a concepção materialista histórica da sociedade, “as relações materiais que os homens estabelecem e o modo como produzem seus meios de vida formam a base de todas as suas relações[2]”. As idéias, as ideologias, a moral, os sistemas jurídicos e religiosos não possuem uma existência autônoma, como que “vindas do céu”, mas ao contrário da filosofia anterior, fazem parte da superestrutura fundamentada sobre a infraestrutura que representa os modos materiais de existência de vida. Essas relações materiais podem ser chamadas de produção social dos bens, que “engloba dois fatores básicos: as forças produtivas e as relações de produção[3]”. As forças produtivas são as condições materiais de qualquer produção, ou seja, a matéria prima e os instrumentos, e as relações de produção a forma pelas quais o homem se organiza para executar a atividade produtiva. Desta forma, se, ficando em um exemplo até simplório, a produção de uma sociedade depender da matéria prima “madeira”, e o facão for o único instrumento, e a finalidade de tal produção for meramente o uso pessoal, as relações sociais tenderão a assumir determinada forma. Como não haverá excedente, não haverá exploração do trabalho alheio, logo, não haverá sentido em se criar uma ideologia que justifique as diferenças sociais. Como o uso será meramente doméstico, não haverá leis que proíbam a utilização de tal madeira. Agora, se a matéria prima continuar sendo a madeira, mas os instrumentos forem as máquinas, e o objetivo for industrial, outras serão as relações sociais de produção, de modo que, surgirá uma ideologia que justifique as diferenças sociais, até como obra da própria natureza, ou uma legislação que não permita a utilização de madeira para uso domestico. Neste exemplo, as formas de produção são a infraestrutura, e a legislação e a ideologia, a superestrutura que se formou a partir daquela base. Seguindo tal raciocínio, há de se buscar a origem e a essência das coisas, não na razão abstrata, ou em um conhecimento a priori, ou ainda, em Deus. A explicação para os fenômenos está na própria história, como diz o próprio Marx:

Totalmente ao contrário da filosofia alemã, que desce do céu para a terra, aqui se ascende da terra ao céu. Ou, em outras palavras: não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou representam, e tampouco dos homens pensados, imaginados e representados para, a partir daí, chegar aos homens em carne e osso; parte-se dos homens realmente ativos e, a partir de seu processo de vida real, expõe-se também o desenvolvimento dos reflexos ideológicos e dos ecos desse processo de vida. (...) Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência[4].

Portanto, a análise materialista de todo sistema irá verificar o modo de produção de determinada sociedade para entender suas estruturas políticas, jurídicas e religiosas. Neste sentido, a análise da religiosidade evangélica deve passar pela análise do modo de produção de nossa sociedade, que é o capitalista, seja ele, em um primeiro momento, “importado” da Europa, seja ele “importado” dos Estados Unidos. Isto porque, os modos de produção irão influenciar de alguma forma as estruturas religiosas.

Por exemplo, no sistema feudal de produção, tínhamos o servo, a nobreza e o clero, que eram classes bem definidas nesta sociedade. A estabilidade era essencial para a preservação de tal sistema, sendo que a religiosidade, através de sua doutrina, impunha tal estabilidade, de modo a ensinar que tal sistema era desejado e ordenado por Deus, não havendo necessidade de mudanças, visto que, uma era a classe que trabalhava, outra a que lutava, e outra a que rezava (são os estamentos, daí dizer que a sociedade feudal era uma sociedade estamental). Todos eram cristãos, mas a vocação do religioso era mais nobre do que a do servo trabalhador, que estava em uma categoria inferior. Na idade moderna, novas formas de produção foram surgindo, sendo que, em uma sociedade de mercadores como a de Calvino, foi muito natural a aceitação, por parte do protestantismo, da questão dos juros, do lucro e da concorrência, desde que, sob certas regras éticas, entenda-se, jurídicas. O profissionalismo, como gerador de lucro, passou a ser valorizado, de modo que, não fazia sentido tal entendimento de que a vocação religiosa era mais importante que a secular, sendo que, no calvinismo, tanta foi a radicalização a ponto de ser eleição divina todo e qualquer oficio. Ou seja, com a mudança nos meios de produção vão surgindo novas formas de entender a religião. Para grande parte da teologia, a mudança veio diretamente de um entendimento melhor de Deus, ou até mesmo de sua vontade. Para Marx, não.

E para os evangélicos modernos, quais seriam as influências impostas pelo sistema capitalista em sua prática religiosa?

A burguesia revolucionou os meios de produção, mudando, portanto, as relações sociais. Tais relações sociais não podiam ser mais as estagnadas da idade média, visto que agora estariam alicerçadas na concorrência, na propriedade privada, e na exploração da mão de obra assalariada, para ficarmos somente em alguns exemplos. Para tanto, foi montado um arcabouço ideológico (superestrutura) para justificar e reproduzir tal sistema, sendo consagradas as idéias de propriedade privada, livre concorrência, livre iniciativa, entre outros. Tal ideologia se refletiu no direito, na moral, e também na religião, sendo tal influência sentida até os dias atuais. Com base em tais dados, passaremos a analisar algumas características da igreja evangélica que, de certa foram, entendemos em grupo que foram influenciadas pelo sistema de produção capitalista.


A incrível diversidades de denominações e estruturas religiosas.

A religião passou a ser um tipo de empreendimento. Não se duvida da sinceridade dos seus fundadores, mas, por exemplo, fundar uma nova denominação em um sistema feudal, durante a idade média, seria algo praticamente inimaginável. Hoje, é natural um grupo de pessoas fundarem uma nova denominação, não causando tal fato estranheza nenhuma. Não se pode ser católico romano, sair de sua igreja, fundando outra, e continuando ser católico romano. É perfeitamente comum ser evangélico, sair da sua igreja, fundar outra, e continuar sendo evangélico. Tal é decorrência, em parte, do individualismo e da livre iniciativa do próprio sistema capitalista. O capitalismo, em tese, não admite monopólios. A salvação não poderia mais ser fruto de uma intermediação comunitária, mas sim da fé individual (individualismo). Ou seja, a fé está totalmente relegada ao plano do privado, do indivíduo, e do egoísmo. Marx comenta o início deste fenômeno com a própria emancipação política do Estado Moderno em relação à religião:

“Digamos que o homem emancipa-se politicamente da religião ao suprimi-la do direito público para o direito privado. A religião já não é o espírito do Estado, em que o homem se comporta, se bem que de maneira limitada e numa forma e numa esfera particular, como ser genérico, em comunidade com os outros homens. Tornou-se o espírito da sociedade civil, da esfera do egoísmo e do bellum omnium erga omnes. Não constitui mais a essência da comunidade, mas a esfera da diferenciação.[5]”.

A tradição de séculos passava a ser relativizada, e tudo tinha que passar pelo crivo da razão do indivíduo (individualismo), auto-suficiente na sua interpretação das Escrituras (racionalismo e antropocentrismo). O homem moderno não suporta mais fazer parte de um todo. Da submissão total do seu ser a um grupo, ainda que ideologicamente semelhante. Ele precisa se diferenciar, pois este é o espírito da sociedade civil capitalista. Não se duvida de que sempre existiram diversos grupos cristãos durante a história, mas a base para a sua diversidade era completamente outra, geralmente a heresia e a divergência. Para o grupo apostólico, tal diversidade e falta de unidade provavelmente não seria vista com bons olhos (visto que ninguém é de Paulo, ou de Apolo, mas todos são de Cristo). Hoje, pode-se crer na mesma coisa, e ainda assim, existir milhares de organizações distintas, pelo simples fato de se querer ter a sua própria igreja (propriedade privada). Assim, como há pluralidade de produtos no mercado, passa a existir pluralidade de denominações. Não se advoga aqui, que tal tenha sido o motivo único da criação do denominacionalismo, mas que, atualmente, a base da pluralidade são outras que não aquelas. Antigamente, determinados movimentos surgiam como que com apelidos pejorativos dados dentro da própria sociedade, como os anabatistas (pelo fato de não batizarem crianças), ou puritanos (apelido dado com cunho depreciativo dado por seus oponentes) ou metodistas (apelido ganho tendo em vista a forma metódica de sua práxis). Até mesmo o nome protestante teve a sua razão histórica de ser. Hoje, são os próprios fundadores que escolhem o nome de suas denominações e penduram suas placas na parede, entretanto, quanto mais divergentes, mais parecidos são. Para o sistema capitalista, tal diversidade é extremamente interessante, visto que, em certo sentido, dificulta a mobilização popular para a defesa das causas sociais. Talvez por isso, a relevância do evangelicalismo brasileiro para tais causas políticas e sociais tenha sido praticamente nula, com exceção do fisiologismo político e partidário que tem levado certos grupos ao poder, mas sem um questionamento real das estruturas do sistema. Portanto, talvez, tal diversidade evangélica, como dito, tenha sua influência ideológica no individualismo, na livre iniciativa, na concorrência e na propriedade privada, própria do modo de produção capitalista. A religião de Calvino e de Wesley provavelmente não teria condição de ter surgido na idade média. O slogan ganhe o mais que puder, poupe o mais que puder, e dê o mais que puder só é eticamente possível no capitalismo, como era e é a Inglaterra de Wesley, visto que, no feudalismo, não havia o que ganhar e o que guardar, para a grande maioria das pessoas. Em um exemplo mais atual, é comum denominações proprietárias de emissoras de rádios não tocarem a música da gravadora concorrente. Quando uma igreja fecha um contrato com uma outra igreja que seja dona de um canal de televisão ou emissora de rádio, geralmente, uma das cláusulas, é não promover os produtos da concorrência (ou seja, de outros produtos evangélicos). É a lógica do mercado. É a lógica da livre concorrência. Mas será a lógica do reino?


A produtização da religião e o consumidor de religião.

Com tal pluralidade, naturalmente, a religião foi sendo transformada em um produto de consumo. Não é somente a religião que consome o indivíduo, mas sim o indivíduo que consome a religião. Enfraqueceram-se os laços de fidelidade e de companheirismo mútuo. Os fiéis passaram a ser pessoas solitárias em meio a igrejas super lotadas, afinal, o compromisso comunitário não é mais assim enfatizado, fruto do individualismo, mas sim o “assistir” ao culto. A teologia da prosperidade é só um desdobramento lógico do que já existe no protestantismo, mais nos reformados e nos evangélicos do que no luteranismo e no anglicanismo, talvez. A questão é que o evangelicalismo mais ortodoxo entendeu que a teologia da prosperidade passou dos limites do eticamente aceitável, ou talvez, de um exagero de ênfase, e, o evangelicalismo faz apenas as correções que entende necessárias a tal teologia, mas dificilmente faz algma crítica profunda ao sistema capitalista, que, na visão marxista, seria o principal responsável pelo desenvolvimento de tais ideologias teológicas.


O marketing religioso

Ora, se a religião é um produto, pela ótica mercadológica, tal precisa ser vendido. Daí, a necessidade do oferecimento de tal produto no mercado. Não se está aqui fazendo uma crítica à real intenção de tais igrejas. É que, para sobreviverem em sociedade, algumas utilizam os mesmos mecanismos que qualquer empresa que queira se sobressair no mercado. Também não se quer dizer que eles queiram vender um produto, ou encarem a religião como produto. É que no seu processo de divulgação, precisam utilizar-se da lógica de venda de qualquer outra “marca”. Os símbolos como método de divulgação sempre existiram, mas a estratégia mercadológica silogística que procura engendrar o ouvinte, convencendo-o e persuadindo-o a que freqüente seus cultos, prometendo-lhe uma certa quantidade de bênçãos, é coisa do nosso tempo.


A igreja empresa

A igreja, para sobreviver neste sistema, se comporta como uma empresa. Por exemplo, as arrecadações têm praticamente o condão de servir para sua própria manutenção, e com raros exemplos, somente secundariamente para a própria comunidade. Também precisa de lucro bem como da mais valia. Algumas vezes, é uma questão de sobrevivência. Outras parecem ser de enriquecimento mesmo. O problema aqui é que a instituição igreja se torna um fim em si mesma. O capitalismo desenvolveu o conceito romano de personalidade jurídica das instituições em si. Isso que dizer que, uma empresa, uma igreja, uma universidade possuem, para o Direito, uma natureza jurídica distinta da de seus membros. Ou seja, a pessoa jurídica pode existir mesmo que não haja membros! Logo, se tornou comum os evangélicos dizerem sou “desta” ou “daquela igreja”. A igreja se torna cada vez mais uma “coisa”, um lugar a que se vai, do que uma comunidade. E não raras vezes, a liderança de tais igrejas age no sentido de preservarem tal “coisa”, ao invés de preservarem a comunidade. Em algumas instituições, só se ascendem na hierarquia eclesiástica aqueles que têm, ainda que implicitamente, consciência da preservação da tal instituição, mais do que da comunidade. É interessante que, quanto maior o grau hierárquico, parece que menor o envolvimento comunitário. A instituição igreja se torna um fim em si mesma, e, a sua sobrevivência e expansão são os principais objetivos. Levar o reino equivale a levar a placa da própria igreja. Parece que não conhecemos outro modo de viver o cristianismo. Para preservar tais instituições, não se criam mais comunidades, mas sim auditórios, que, conforme dito, consomem a religião. Basta que assistam ao culto, e que paguem o dízimo, e já serão bons fiéis. Passam a existir então duas igrejas: uma que assiste e outra especializada no serviço religioso (o clero), mas, diferente do catolicismo romano, de forma um tanto quanto velada, e com uma mentalidade nitidamente empresarial. E dentro deste clero, há uma rígida divisão do trabalho (não se trata mais de falar de um dom, mas sim de um cargo). Tudo é dividido em departamentos, e extremamente especializado. Até os cultos são especializados (da família, da cura, da oração, dos empresários, das senhoras, etc). Ora, um dos pilares do capitalismo é justamente a rígida divisão e especialização do trabalho.


Conclusão

Talvez, um dos grandes méritos de Marx tenha sido o de fazer com que enxergássemos o real motivo por trás dos fenômenos que se nos apresentam existencialmente. Enxergar que as realidades não vêem prontas, mas são frutos de um processo histórico de transformação dinâmica e dialética. Enxergar a igreja por este prisma não se dá em uma tentativa de destruí-la, mas sim de, constantemente reforma-la, para que ela possa cada vez mais servir aos propósitos para que, cremos, tenha sido criada. O alerta marxista se dá no sentido de que, a religião faz parte da superestrutura, e esta, tem por característica básica, a preservação do sistema em que está inserida. Isto nos põe diante de muitas perguntas, como: o evangelho deve se adaptar aos sistemas que está inserido, ou transformá-los? O capitalismo é o sistema mais adequando com a proposta evangélica? A transformação do sistema é um dos objetivos da igreja? A pregação do evangelho tem poder para a transformação do sistema, ou este não é o seu objetivo? Transformaremos a realidade simplesmente transformando os indivíduos, ou algo a mais precisa ser feito? Estes questionamentos são importantíssimos, pois, a resposta que a estas perguntas daremos influenciará toda a nossa prática. Encerramos com a observação de Tillich acerca dos ensinos de pensadores que, historicamente, foram inimigos da Igreja, como foi o caso de Marx: “... muitas vezes Deus fala à igreja mais diretamente de fora da igreja, por meio dos inimigos da religião e do cristianismo, do que a partir de seu interior, por meio dos representantes oficiais da igreja[6]”.



COSTA, Cristina. Sociologia. Introdução à Ciência da Sociedade. São Paulo: Editora Moderna, 1997.

MARX, Karl; ENGELS, Friederich. A ideologia Alemã. São Paulo: Hucitec, 1999.

MARX. Karl. Manuscritos Econômicos e Filosóficos. Coleção a Obra Prima de cada Autor. São Paulo: Martin Claret, 2001.

MASCARO. Alysson Leandro. Introdução à Filosofia do Direito. Dos modernos aos Contemporâneos. São Paulo: Ed. Atlas, 2002, p. 104.

QUINTANEIRO, Tânia., OLIVEIRA BARBOSA, Maria Lígia & OLIVEIRA, Márcia Gardênia Monteiro de. Um Toque de Clássicos. Marx, Durkheim, Weber. 2ª edição, Belo Horizonte: UFMG, 2002.

TILLICH, Paul. Perspectivas da Teologia Protestante nos Séculos XIX e XX. São Paulo: Aste, 2004.

[1] MASCARO. A. L. Introdução à Filosofia do Direito:. Dos modernos aos Contemporâneos. São Paulo: Atlas, 2002, p. 104.
[2] QUINTANEIRO, T., OLIVEIRA BARBOSA, M. L. & MONTEIRO DE OLIVEIRA, M. G. Um Toque de Clássicos. Marx, Durkheim, Weber. 2ª edição, Belo Horizonte: UFMG, 2002, p. 31.
[3] COSTA, C. Sociologia. Introdução à Ciência da Sociedade. São Paulo: Moderna, 1997, p. 91 .
[4] MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia Alemã. São Paulo: Hucitec, 1999, p. 37.
[5] MARX. Karl. Manuscritos Econômicos e Filosóficos. Coleção a Obra Prima de cada Autor. São Paulo: Ed. Martin Claret. P. 24, grifo nosso.
[6] in Perspectivas da Teologia Protestante nos Séculos XIX e XX. São Paulo: Editora Aste, p. 238


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